Campanhas de desinformação veiculadas por meio de redes sociais têm alterado o rumo de processos eleitorais e plebiscitos no mundo inteiro, impactando de maneira profunda o funcionamento das democracias participativas. Mas, se a proliferação de notícias falsas representa de fato um obstáculo à nossa democracia, as formas de superá-lo esbarram em questões complexas sobre liberdade de expressão e o monopólio da verdade. Movimentos da sociedade civil, legisladores, especialistas e juristas do mundo inteiro têm se debruçado sobre o tema na tentativa de trazer saídas em um mundo hiperconectado. Diante disso, A RAPS se uniu ao Estadão para promover o evento “Fake News e as consequências para a democracia”. Realizado em 31 de agosto, o encontro online reuniu alguns personagens relevantes para esse debate.
Estiveram da conversa Mônica Sodré́, cientista política e diretora executiva da RAPS; Daniel Bramatti, editor do Estadão Dados; Demi Getschko, cientista da computação, diretor presidente do Núcleo de Informação e coordenador do Ponto BR; e Monica Rosina, gerente de Políticas Públicas do Facebook no Brasil. O evento também contou com participação especial do Líder RAPS e senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), autor do PL das Fake News; e de Giuliano Da Empoli, autor do livro “Engenheiros do Caos”. A mediação foi de Alberto Bombig, editor da Coluna do Estadão.
Desinformação e novo comportamento digital
No início do debate, Daniel Bramatti, editor do Estadão Dados, abordou o desgaste e a deturpação da palavra “fake news” e como isso tem prejudicado o debate em torno do fenômeno da desinformação presente no momento. “O uso do termo fake news é pouco abrangente, pouco explica do fenômeno da desinformação e foi sequestrado por políticos que chamam assim tudo o que os desagrada”, explicou. “O termo está popularizado, mas está distorcido, e de forma intencional. Tanto nos EUA como no Brasil, há notícias de jornais que são propositadamente acusadas de fake news por políticos para gerar desinformação e confusão à população”.
Diretora executiva da RAPS, Mônica Sodré trouxe para o debate a perspectiva de comportamento midiática da sociedade, alterada pelo impacto da tecnologia nas últimas décadas. “O que acontece é que fomos deslocados para comunicação de massa, de um para muitos nos veículos tradicionais, e estamos assistindo um fenômeno relativamente novo, de cerca de 20 anos para cá, em que muitos falam para muitos por meio de seus telefones e computadores. A audiência passou a ser não só receptora de um determinado conteúdo, mas passou a ter um protagonismo de produção, disseminação e veiculação desses conteúdos”, contextualizou
Demi Getschko acrescentou que atualmente “todos falam, mas muito mais escutam do que escutavam no passado”, uma vez que mais pessoas recebem informações em formato digital do que as que consumiam jornal no passado. “Antigamente, nós procurávamos a informação que nos interessava. Hoje, a coisa é invertida, a notícia nos procura. O leitor é o alvo da informação nesse modelo, e é aí que os algoritmos trabalham intensamente e são reforçados pontos de vista que geralmente já se concordava. O processo me dá aquilo que eu gostaria de ler e minha posição reforçada. As bolhas na verdade são cápsulas sólidas e resistentes. Isso gera uma radicalização, e isso interessa aos que usam as pessoas como vítimas, como alvo desse processo”, afirmou o cientista da computação.
Impacto das fake news na democracia
Para Demi Getschko, o conceito de liberdade é intrínseco à internet desde a sua criação e a ideia de controlar conteúdos não se conecta a isso. “Não podemos confundir internet com o que são construção sobre a internet. A internet é uma plataforma extremamente ampla sobre a qual construíram muitas coisas, que pode ser ótimas ou trazer desvantagens em alguns casos. A internet contribuiu para que tivéssemos mais democracia direta e maior participação, mas, ao trazer essas coisas, ela expôs fragilidades que são naturais do nosso tecido social”, declarou.
A análise de Mônica Sodré considerou que as fake news são uma ameaça e tem trazido consequências bastante complexas para a democracia. A cientista política afirmou que as democracias encontram-se em dificuldade no mundo e que esse não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Ela citou, ainda, o conceito de “recessão democrática”, do professor Larry Diamond, da Universidade de Stanford, que designa o fenômeno de ruptura e convulsão de democracias no mundo desde 2006. “Há necessidade de olhar para o fenômeno das fake news como instrumento que tem por fim mascarar e deturpar nossa visão e compreensão do que é real e do que é falso. Nesse aspecto, as desinformações são um risco. Na medida em que democracia se baseia em confiança e informação para a tomada de decisão, o fato de termos informações por vezes fragmentadas e falsas pode comprometer qualidade da democracia e da nossa capacidade de tomada de decisão, assim como pode ferir direitos”, justificou.
Como parte da saída para o problema apontado, Mônica Sodré defendeu a educação como um dos pontos a serem focados. “Do ponto de vista macro, precisamos investir em educação para a cidadania. Os parlamentos têm um papel em relação a isso. A gente precisa educar os cidadãos do ponto de vista midiático e informacional, para que possam reconhecerem o que é falso e o que não é”, argumentou.
Regulação e PL das Fake News
De maneira geral, os participantes do evento consideram que a aplicação de leis é insuficiente para lidar com um problema tão complexo como o fenômeno das fake news, como pretende o projeto de lei do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), aprovado no Senado Federal e em tramitação na Câmara dos Deputados.
Gerente de Politicas Públicas do Facebook no Brasil, Mônica Rosina afirma que a desinformação é um problema a se enfrentar e que plataformas como o Facebook reconhece essa necessidade, mas tem ressalvas quanto ao modelo de regulação em discussão no Congresso Nacional. “A forma como o projeto de lei se estrutura hoje, em grande medida, foca no conteúdo e silencia as pessoas. Com esse foco, o risco que se corre é punir sempre o desavisado”, explicou.
Mônica Rosina entende que o projeto de lei nasce bem-intencionado, mas erra em diversos pontos ao atacar outros tipos de direitos na tentativa de conter as notícias falsas. “O Facebook não é contrário à regulação, Mark Zuckerberg inclusive já se colocou favoravelmente a isso. O que nos colocamos contrariamente é à regulação que iniba cidadão e freie a inovação. A forma de combate não pode ser a censura”, complementou.
Para Daniel Bramatti, a proposta de regulação em discussão oferece riscos à liberdade de expressão. O editor do Estadão Dados chamou atenção para a rastreabilidade de mensagens, que hoje são criptografadas de ponta e ponta, prevista no PL. “E a privacidade da comunicação entre duas pessoas precisa ser respeitada. Se elas acharem o que o conteúdo pode se revelado, vão pensar duas vezes antes de falar ou escrever algo”, disse. “Governos autoritários aprovaram leis contra fake news para reduzir a livre circulação de ideias e suprimir a possibilidade de críticas em seus países. Isso tem acontecido e é um alerta no momento em que temos um projeto tramitando aqui no Brasil”, finalizou.
Já para Mônica Sodré, é necessário ter algum tipo de regulação, mas não necessariamente de conteúdos. “Deveria estar mais no nível de comportamento, garantir que comportamentos inautênticos que hoje abalam o debate por conta de mecanismos artificiais sejam vetados”. A diretora executiva da RAPS também citou a importância de olhar para o desequilíbrio que o dinheiro traz com a compra de disparo de desinformação, por exemplo, fato em que se avançou muito pouco nos últimos anos. “Estamos vendo a artificialidade do debate”, declarou.
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