Para a diretora do filme Chega de Fiu Fiu, Amanda Kamenchek Lemos, o combate ao assédio passa necessariamente pela conscientização da população e pela qualificação do debate. A diretora ainda afirma que a punição para agressores é importante, desde que venha acompanhada da educação e do debate sobre violência de gênero.
Para Amanda, há uma série de barreiras nas cidades que afetam diariamente as mulheres. Algumas são físicas e objetivas, como baixa iluminação pública ou transporte público deficiente, outras, invisíveis, como o assédio praticado pelos homens, que gera insegurança e dificulta o trânsito das mulheres nas regiões urbanas. Com uma hora e dez minutos de duração, o documentário Chega de Fiu Fiu trata desses assuntos, reunindo relatos de três mulheres sobre situações que enfrentam no dia-a-dia em municípios brasileiros. O filme faz parte de uma série de ações, encabeçadas pela organização Think Olga, e desenvolvidas para debater e combater o assédio, como um estudo sobre a opinião de mulheres sobre cantadas de rua, além de um mapa interativo.
A diretora do filme participou do evento #RAPSporElas, realizado nos dias 13 e 14 de julho, em São Paulo. A exibição de Chega de Fiu Fiu, seguido pelo debate com Amanda, fizeram parte da programação, junto a uma formação para lideranças femininas. O evento foi realizado pela Rede de Ação Política pela Sustentabilidade – RAPS, juntamente com o GT Mulheres RAPS, coletivo auto-organizado com as lideranças femininas da rede.
RAPS – Como foi o desenvolvimento do filme Chega de Fiu Fiu?
Amanda Kamenchek Lemos – Eu e a Fernanda Frazão, a outra diretora do filme, trabalhávamos com documentários, e já tínhamos interesse em fazer um filme com essa temática. Quando surgiu o Chega de Fiu Fiu, em 2013, com os estudos que foram divulgados, pensamos que seria uma grande oportunidade transformar a campanha em uma experiência audiovisual, e, logo de início, pensamos em fazer dela uma ferramenta de advocacy. A ideia era que o filme fosse um braço de articulação e um braço de educação sobre o tema. Fizemos a parceria com a Think Olga [organização que busca emponderar mulheres a partir da informação] e começamos a trabalhar em 2014 no filme.
O projeto Chega de Fiu Fiu estava começando, e o filme tem uma história conjunta, de continuidade. Houve um estudo pioneiro, feito em 2013, realizado pela jornalista Karin Hueck, que fez um grande levantamento de dados, com mais de 7 mil mulheres respondendo questões sobre assédio. Nessa época, o assédio era uma palavra não dita, então, não era um tema da agenda. Mas isso mudou entre 2013 e 2014. Com essa pesquisa o tema começou a correr, principalmente pela internet e, de repente, ganhou espaço no debate público em várias esferas.
O filme dá ênfase ao debate sobre o direito à cidade, e fala sobre as barreiras visíveis e invisíveis que atingem as mulheres nos centros urbanos. Quais são essas barreiras?
Amanda – Quando olhamos para a construção das cidades, principalmente no Brasil, percebemos que elas não foram feitas pensando na igualdade de gênero. No país, 86% das mulheres têm medo de sair às ruas. Quando falamos das barreiras visíveis, a gente fala sobre falta de iluminação pública, que é um entrave, além da dificuldade de mobilidade e a falta de transporte público, principalmente à noite ou de madrugada. Os terrenos baldios e ermos, que estão espalhados pelas cidades, acabam fechando os caminhos para as mulheres. Há também a questão de comércios e residências: como os bairros não são mistos, muitas vezes à noite você passa em um lugar residencial que não tem nada nem ninguém, e isso causa muita insegurança.
Já em relação às barreiras invisíveis, acho que uma delas era, até então, a questão do assédio – uma série de violências tidas como aceitáveis, e que fazem parte do nosso dia a dia, mas que os homens não viam. Todas as mulheres sofrem com isso, mas os homens não tinham ideia de quão cotidiano e quão violento isso é, por isso essa questão se torna invisível. Outra barreira é o mapa mental que temos que fazer, com o horário que vamos sair, a roupa que vamos colocar e a rua que vamos circular. Dependendo do lugar e do horário, a nossa roupa pode causar problemas para a gente. Não há políticas públicas que olhem para essas vias que trafegamos, então também é uma barreira invisível.
Um dos pontos levantados no filme é o assédio praticados pelos homens. Claramente ele busca ser uma peça de conscientização, mas as pessoas ainda consideram algumas das cenas do filme surpreendentes e chocantes. Como você acha que essa conscientização pode se tornar mais perene, e menos surpreendente?
Amanda – Falamos isso no filme: que o assédio não seja um tema tabu, e que as pessoas possam discutir esse tema em qualquer ambiente, como uma questão cultural e social. Todos nós, homens e mulheres, temos que pensar em soluções para que esse problema deixe de existir. Quando falamos sobre assédio de forma transparente e qualificada, entendendo o que realmente significa, a gente começa a resolver esse problema. Acho que não só dentro de casa, mas também nas escolas, nos espaços sociais que temos de troca, no trabalho, em qualquer ambiente é possível a discussão, para que possamos começar a pensar em soluções inteligentes para combater o assédio.
Pensando em uma questão de políticas públicas, como pode ser combatido o assédio e essas barreiras visíveis e invisíveis nas cidades?
Amanda – Analisando as políticas públicas já existentes, acho que elas não são bem cumpridas. Por exemplo, temos vários casos de assédio e violência sexual em veículos de aplicativos ou no transporte público que não tiveram punição e que não foram julgadas. Há uma falta de compreensão sobre o que o assédio significa, do que é sofrer violência pelo simples fato de ser mulher.
Podemos começar a falar em soluções quando qualificarmos os gestores e funcionários públicos, desde o delegado, o policial, o profissional da saúde, até os professores e diretores de escola, integrando uma rede para olhar esse problema como uma questão transversal. Acho que já há leis e políticas públicas que tratam do tema e que devem ser implementadas, mas há pouco trabalho em rede e parcerias, que olham para o problema e buscam soluções de curto prazo. Isso deveria ser fortalecido e valorizado.
O debate sobre sensibilização é muito importante, mas também se debate sobre as punições para quem comete esses delitos. Nesse ponto, quais são os caminhos para o combate ao assédio, é necessário pensar também em formas de punir quem comete esses delitos?
Amanda – Não só o Brasil, mas o mundo todo começou a olhar o assédio como uma forma de violência. O debate é recente e tem relação com a cidadania, com a democracia, e com todo o movimento das mulheres tornarem-se parte ativa de vários espaços de poder na qual elas não tinham presença. Quando olhamos para a questão do assédio, da implementação de políticas públicas e, principalmente, para essa tendência de tratá-lo como violência, existe uma questão punitiva, mas que não é a única solução. A punição é importante, mas acreditamos muito também na esfera civil, de você cumprir um papel enquanto cidadão.
Existem possibilidades de você aplicar uma multa, ou uma sanção social, demarcando e tipificando o que é o assédio, em todos os âmbitos, mas acho que a primeira coisa da punição é deixar claro que a sociedade não aceita mais esse tipo de violência. Isso tem acontecido em vários lugares, como Portugal, na França, na Bélgica, e mesmo aqui no Brasil estão surgindo novas leis que estão discutindo isso. Portanto, não acho que seja uma questão meramente punitiva, é também uma questão moral, de como você não pode se comportar.
Também precisamos pensar em uma pena educativa, não necessariamente em todos os casos, pois acho que a violência tem várias nuances. Acredito que punição e a questão educativa e social devem estar interligadas. Um bom exemplo já existente é o que temos na Lei Maria da Penha, em que os homens autores de violência têm de participar de grupos de estudos para entender as questões de masculinidades e de violência de gênero. É importante ter uma política para homens que cometem violência, fazendo com que eles comecem a entender o problema, debatendo muitas vezes entre eles, muito mais do que enclausurá-los. Acho que estamos olhando para os direitos humanos e para seu avanço, então não adianta só punirmos de maneira que não eduque.
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